
MONÓLOGO INTERIOR
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MONÓLOGO INTERIOR
MAIO | 2025
EXPOSIÇÃO COLETIVA
CURADORIA JURANDY VALENÇA
ATÉ 21 DE JUNHO | 2025
O QUE SAIU NA MÍDIA
Monólogo Interior
“Não tenho tempo para descrever meus planos. Eu deveria falar muito sobre As Horas e o que descobri; como escavo lindas cavernas por trás das personagens; acho que isso me dá exatamente o que quero; humanidade, humor, profundidade. A ideia é que as cavernas se comuniquem e venham à tona”.
Virginia Woolf (anotação no diário, 30 de agosto de 1923)
Monólogo é o nome dado para um discurso feito apenas por uma pessoa ou um personagem, sem interação com outros participantes e de modo ininterrupto, com o intuito de expressar seus pensamentos e sentimentos em silêncio ou em voz alta. Tanto para si, quanto para o público, para os outros. Acredito que é assim que o artista, o criador age. Um solilóquio, no seu canto, no seu Kant, pensando, refletindo e executando sua obra. Não é à toa que a origem da palavra vem do teatro e sua etimologia, do grego, significa “solitário”, “sozinho”. O palco do escritor, quiçá uma das profissões mais solitárias, é a folha em branco, o papel e por fim o leitor; o do artista visual é tanto o suporte de sua produção nos mais variados materiais, como também a plateia que observa sua obra no “cubo branco” da galeria, no espaço institucional ou no público.
“Monólogo Interior” é uma curadoria que abraça as artes visuais e a literatura em uma conversa, em um diálogo atravessado por ficções e fricções. E reúne cerca de 45 obras de 18 artistas para celebrar o centenário de “Mrs. Dalloway”, um dos livros mais importantes da literatura do século 20, escrito por Virginia Woolf (1882-1941), autora pioneira no campo da crítica feminista, e que coloca em foco na sua obra a vivência do cotidiano das mulheres na sociedade patriarcal que persiste até hoje, desafiando as normas estabelecidas no contexto histórico-social no qual viveu. Um dos seus livros mais importantes é o eixo, o centro gravitacional no qual orbitam os trabalhos das artistas de oito Estado do Brasil, e de uma artista do Líbano, já falecida, que se radicou no país. São desenhos, esculturas, fotografias, instalações, objetos, pinturas e vídeos que, de alguma forma, procuram estabelecer essa travessia no infinito particular não só da escritora homenageada, mas também, e principalmente, no de cada uma das artistas aqui presentes.
O fluxo de consciência
“Mrs. Dalloway” narra em um único dia de junho a vida de Clarissa Dalloway, uma mulher da alta sociedade londrina (e aqui não podemos esquecer do clássico “Ulisses”, de James Joyce, publicado três anos antes, e que também se passa em um único dia de junho). No decorrer da rotina aparentemente comum dessa mulher, a autora nos brinda com uma reflexão profunda sobre a memória, a morte e a vida. No enredo, a protagonista está ocupada nos preparativos de uma festa à noite em sua casa. Nesse arco temporal o leitor tem acesso aos seus pensamentos e emoções, assim como ao dos outros personagens; como o soldado Septimus Warren Smith, ex-combatente da 1a Guerra Mundial que enfrenta um transtorno do estresse pós-traumático do conflito, e que no romance se suicida, assim como a própria autora.
Virginia estabelece um modelo inédito na literatura do século 20 tendo o tempo, seus fluxos e a memória como o leitmotiv da sua obra. Sobrepondo as individualidades de seus personagens e expondo suas percepções íntimas em uma narrativa estruturada de forma metafórica e poética, na qual os interlúdios, os solilóquios atuam em entreatos, como em uma composição musical ou teatral (aliás, “Entre os Atos” foi o seu último romance, publicado após sua morte, e sua ação transcorre também em apenas um dia). Em sua prosa singular, ela se utiliza de um recurso narrativo que é, digamos, o motor da sua produção; e que desempenha um papel fundamental: O fluxo de consciência. Por intermédio dessa técnica, sua escrita tem a habilidade de apreender os pensamentos e sentimentos interiores de seus personagens, retratando suas subjetividades, seus dilemas e emoções. Principalmente no que diz respeito à [des]construção formal do conteúdo em um gênero literário fundamental no início do século passado, o romance. Ela suscita alterações na perspectiva e no discurso do seu narrador (ou narradores), no qual suas memórias e pensamentos se enredam de forma não linear, criando uma narrativa fragmentada e multifacetada que reflete a complexidade da natureza subjetiva da consciência. Nesse monólogo interior, os diálogos internos dos personagens exploram temas como o transitório da vida, a solidão, o envelhecimento, a loucura e o labirinto das relações humanas.
Mrs. Dalloway
O livro é o primeiro da sua trilogia experimental, seguido de “Ao Farol” (1927) e daquele que é considerado sua obra-prima, “As Ondas” (1931). Entre eles, ela escreveu um de seus livros mais conhecidos, “Orlando” (1928), e que, como “Mrs. Dalloway, também foi vertido para o cinema em 1992 com direção de Sally Potter, com a atriz Tilda Swinton como protagonista. Vale lembrar também do filme “As Horas” (2002), dirigido pelo também cineasta britânico Stephen Daldry (uma versão cinematográfica do romance homônimo do estadunidense Michael Cunningham). “As Horas” era o título provisório do livro. Para celebrar os 100 anos dessa obra seminal, essa exposição mistura - como em uma amálgama - duas linguagens, cada uma com seu léxico próprio, que se entrelaçam compondo uma partitura lítero-musical. Virginia, assim como as artistas aqui reunidas, nos oferecem uma outra escuta/leitura/visão por intermédio de suas obras, de “seus personagens”. Nós, espectadores, leitores e ouvintes escutamos, lemos e vemos “não o que eles falam, mas o que eles estão pensando, não a sua fala, mas a sua consciência”.
Não podemos esquecer que uma das funções de um curador também é contar uma história, tecer uma narrativa visual - mais que tudo subjetiva - com o intuito de alinhavar diversas obras em um monólogo interior que é intrínseco no fazer artístico. Aqui, a protagonista do livro, Clarissa Dalloway, se desdobra nas artistas e em seus respectivos trabalhos. Porque na criação artística, seja em qual linguagem for, o artífice lida com interpretações, reflexões e representações de cunho existencial, filosófico e poético que partem das suas experiências e observações comuns e triviais do cotidiano tornando-as [extra]ordinárias.
As artistas e suas obras
O último monólogo
Aqui, na maioria das obras apresentadas, o papel é o intérprete, protagonista. Ele e seus derivados, como o papelão, por exemplo. Assim como a película cinematográfica e fotográfica; a “pele” fina e superficial que se corporifica também no tecido das telas das pinturas e nas texturas das esculturas e objetos como na grande escultura de Waleska Reuter (ES), uma figura quase humana, um menino que traz em si um enigma e um erotismo sem pudor, que parece uma esfinge a espreitar o alhures. O papel se presentifica na potente instalação de Edith Derdyk (SP), na qual ondas deles se equilibram, se apoiam em carvões, um material de origem mineral ou vegetal, que no manto terrestre, nas rochas fundidas e sob condições extremas de calor e pressão transformam-se em diamantes. Ambos compostos por Carbono, mesmo elemento do qual é feito o grafite, material usado para a escrita, que é personagem dos desenhos de Marcia Tiburi (RS); ela mesma também escritora e filósofa que cria palimpsestos visuais com nanquim e tinta dourada numa alquimia que reverencia o ato de escrever em si e em toda a sua visualidade.
Ademais, vale lembrar que a celulose – seu principal componente - é extraída da madeira; abundante na natureza e presente em praticamente todas as plantas, desde árvores até gramíneas; e abrange cerca de mais de 30% de toda a matéria vegetal presente no planeta. O papel também é o elemento central que Fabiola e Christian Pentagna (SP) usam em seus trabalhos; e a escultura criada pelo casal remete ao “Triadisches Ballett”, de Oskar Schlemmer (que foi professor na Bauhaus), e que estreou em 1922 na Alemanha. Uma figura que não é humana na sua representação, mas que traz em si enquanto matéria o indivíduo, o sujeito. O que nos remete aos trabalhos de Luiza Mazzetto (SP), onde uma natureza reinventada se [des]equilibra entre o artificial e o real com suas esculturas/objetos que se projetam da parede provocativos e coloridos. Ele, o papel, também se transfigura em gesso no livro belo e silencioso de Nicole Mouracade (Líbano-Brasil). Gesso, o pó branco que quando misturado à água, forma uma pasta que endurece com rapidez, que serve para dar forma, moldar, mesmo que o branco do livro que jaz imóvel em sua rigidez parece uma onda que desistiu de continuar.
A natureza, tanto a exterior quanto a interior vem à tona na exuberância cromática e de formas das pinturas de Claudia Tostes (MG), em camadas nas quais nossa perspectiva visual se embaralha entre o que é o fundo e superfície; ou nos vídeos criados por Giselle Beiguelman (SP) com Inteligência Artificial, nos quais ciência, história, magia e tecnologia se fundem em uma narrativa hipnotizante. Nas construções têxteis com linhas e papelão de Allisson Opitz (SP), bordados que formam paisagens afetivas de memórias, em um fazer manual que convida ao toque e que se equilibram entre o bi e o tridimensional; assim como os trabalhos de Gabriela Fontes (AL) e Paty Wolff (RO). A primeira, autodidata e surda, mora no sertão do Rio São Francisco e cria também com tinta acrílica e papelão (sempre considerado um material “ordinário”) casas de papel, fachadas, platibandas com uma cartela de cor que seduz de imediato o observador. Paty, que também é escritora e geógrafa, usa o mesmo suporte para figurar criticamente questões sociais nas quais as memórias coletivas e individuais se mesclam para dar lugar a corporificação de histórias indígenas e pretas da nossa história afro-brasileira.
Nessa cartografia lítero-visual, o lócus é um outro canto, outro Kant (em um trocadilho em relação ao “pensar”, “interpretar”). Os objetos do cotidiano de uma casa são transfigurados em esculturas, objetos pictóricos nos quais as coisas e os detalhes assumem um outro lugar, real ou fictício como nas obras de Karen de Picciotto (SP) e San Bertini (SP). Esses monólogos tornam-se exteriores também nas fotografias de Aun Helden (SP), Mayara Ferrão (BA) e Nelly Gutmacher (RJ). Mais uma vez corpo, história e memória se entrelaçam cada a um a seu modo. Trazendo leveza, sedução e tensão nessa película que é também pele e que fricciona saberes imaginários e [su]reais, como na técnica excepcional dos retratos a óleo de Thix (RS), que exploram noções de beleza e identidade queer que evocam imagens de poder colocando em cheque a historiografia e a representação clássica.
Como diz assertivamente Ana Carolina Mesquita, na edição dos “Ensaios Seletos” da autora com organização e tradução de Leonardo Fróes, “esse interesse fundamental pela conversa entre autor e leitor torna Virginia Woolf, de certo modo, uma pioneira dos estudos da recepção do texto literário, alguém ciente de que a forma como um texto é lido se altera a cada geração”. Fróes reforça essa percepção no texto de apresentação dos ensaios: “Com o pensamento assim em suspensão, ela faz o leitor entrar em cena, não o tomando por passivo consumidor de ideias alheias, e sim por um parceiro que atua para completar sua obra”. Não é assim também para aquele que adentra e vê o universo da produção de um artista visual? Pois é essencial a maneira como a obra é “lida”, vista, nos tornando agentes ativos dessas interpretações para arrematar o que é enxergado, o que é posto em cena para uma outra, uma nova confabulação?
Em 28 de março de 1941, aos 59 anos, em uma crise depressiva durante os bombardeios na Inglaterra na Segunda Guerra Mundial, ela sucumbe. Enche os bolsos de seu casaco com pedras e se afoga no rio Ouse, próximo à sua casa. Em uma das obras expostas, “Ophelia” (2021), o vídeo de Gabriela Greeb (SP) materializa em um simulacro baseado na personagem de “Hamlet”, de Shakespeare, o suicídio de Virginia. Uma mulher que cai em um looping [in]finito do céu para as águas de um rio, flutuando inerte e impávida, mas sempre altiva, em um fluxo contínuo no qual o tempo e o movimento moldam essa poesia visual.
Lembro de uma frase da escritora Socorro Acioli que apresenta ao leitor brasileiro uma edição do clássico “Um quarto só seu” (em outras traduções, “Um Teto Todo Seu”): “Ler é um ato de criação”. Concordo totalmente, assim como também acredito que ver é um ato de criação. Sempre há uma conversa, um diálogo (mesmo subjetivo) entre o ler e ver as criações, sejam elas literárias ou visuais (ou ambas). E reforça a coragem e o papel de Virginia no início do século 20 em uma sociedade na qual as mulheres eram relegadas às condutas morais e sociais estabelecidas, ou melhor, impostas a elas pelo patriarcado, pelos homens. “Mulheres são ensinadas a pedir licença. Ela não pediu”.
Jurandy Valença